Uma
questão de fidelidade
"Durante
o tempo em que estive empenhado em levar o Memórias Póstumas
de Brás Cubas para o cinema ouvi sempre das pessoas a inevitável
pergunta: "é uma adaptação fiel à obra?" A resposta, à primeira
vista muito fácil, é na realidade cheia de implicações.
Quem está questionando essa fidelidade pode estar querendo
saber se houve uma transposição rigorosa da literatura para
o audiovisual, ou se, ao contrário, o filme só foi levemente
inspirado no romance; mas também pode estar curioso se,
na adaptação, houve criatividade à partir do material literário,
ou se os realizadores simplesmente tentaram usar a obra
consagrada pegando carona em seu sucesso, parasitariamente
sem buscar uma originalidade própria.A escolha de uma obra
já pressupõe um certo tipo de opção. Hitchcock dizia que
só se pode fazer um grande filme a partir de uma obra medíocre,
e por isso ele jamais se dedicara a adaptar um grande clássico.
Mesmo estando convicto de que isso foi apenas uma blague
do grande mestre inglês, considero que ele pode estar certo
quando se refere a filmes em que se aproveita apenas a narração
literária (uma historinha...), às vezes apenas um trecho
de um livro como motivação; e a partir desse pequeno núcleo
vai-se livremente fazendo modificações a tal ponto que muitas
vezes nem se reconhece qual livro serviu de fonte para o
filme. Em muitos casos o filme torna-se melhor que o livro.
Mas existem outras adaptações diferentes das de Hitchkock
e, contrariando sua teoria, bem sucedidas. Quem se pergunta
se o "Macbeth" de Polanski é melhor que o de Shakespeare,
ou se o "Vidas Secas" de Nelson Pereira dos Santos é melhor
que o de Graciliano Ramos? Filme e livro desempenham nesses
casos seu próprio papel sem que haja uma concorrência entre
ambos. Eles diferem entre si pela natureza do objeto - normalmente
com a vantagem de sobrevivência no tempo e grau de profundidade
para o livro e, às vezes, uma certa vantagem numérica e
momentânea de público para o filme.
Alguém pode pensar que a fidelidade ao texto deveria resultar
em uma adaptação que seria a edição dos trechos mais significativos
mantidos o mais próximo, se possível iguais ao original
literário - uma espécie de resumo visual do livro. Essa
pessoa estaria desprezando o sentido particular de cada
forma de expressão e ignoraria que um texto literário ilustrado
por imagens resulta geralmente em algo completamente diferente
do livro lido. A literatura, por mais que seja descritiva,
não mostra o objeto visual com imagens físicas como no cinema
e, por outro lado, ela pode usar elementos abstratos que
são impossíveis de serem filmados, como o pensamento e os
sentimentos de personagens. O leitor define como, quando
e com quê interrupções fará a leitura. Em um filme essa
possibilidade não é relevante; são linguagens diferentes.
Portanto, vamos estabelecer desde já que numa adaptação
cinematográfica ser fiel a um livro não passa obrigatoriamente
por tentar manter no filme o máximo de coisas iguais ao
original literário.
O que mais me fascinou na leitura do Memórias Póstumas de
Brás Cubas foi o ceticismo com tudo e com a própria história.
O defunto/autor narra conversando com o leitor, pula trechos,
mantém imperfeições, faz devaneios e depois critica os próprios
devaneios. As constantes rupturas, repletas de dualismos
e ambiguidades, a utilização de um português extremamente
clássico, combinado com uma composição pouco ortodoxa, isso
tudo são fragmentos que formam um todo surpreendentemente
linear. Machado de Assis ironiza o tempo todo a própria
forma narrativa, e isso em tom completamente dissimulado,
sem alarido, como se não quisesse nada. Há um ceticismo
em relação a tudo, inclusive a si mesmo, e à medida que
o ceticismo em relação a si mesmo põe em questão a credibilidade
do personagem cético, ele questiona o próprio ceticismo.
É como a cobra comendo o próprio rabo. O que pode ser mais
moderno que isso?
Pareceu-me formidável também que o livro foi escrito "com
a pena da galhofa e a tinta da melancolia" nas próprias
palavras de Brás Cubas. A ambiguidade entre essas sensações
de humor e tristeza, sempre presente no romance, é de uma
instabilidade única, como num daqueles desenhos em que se
pode ver uma figura e um fundo ou, ao prestar-se atenção
em outro momento, percebe-se que o mesmo desenho também
pode ser visto com o fundo como se fosse a figura... e a
figura se torna o fundo. Em Machado de Assis pode-se às
vezes ler uma frase rindo ou com lágrimas nos olhos, conforme
o foco do pensamento esteja dirigido para a galhofa ou para
a melancolia.
Demorou um certo tempo até que eu percebesse que o livro
já era de "época" - uma vez que Machado de Assis o escreveu
mais ou menos em 1880 e Brás Cubas viveu de 1805 a 1869,
ou seja, morreu 11 anos antes do livro. O único personagem
presente ao momento da narração era o defunto/autor. É evidente
que diante da eternidade da existência de um fantasma, 11
ou 130 anos após a morte é quase a mesma coisa. Essa constatação
foi fundamental para entender que "um defunto" pode em 1880
contar sua história para a literatura e resolver, muitos
anos depois com o advento da era do audiovisual, levá-la
ao cinema e dirigirindo-se ao espectador moderno com uma
linguagem mais atualizada.
É regra cinematográfica que se deva tirar palavras de filmes,
evitando a verborragia; o ideal é transformar o máximo do
que é dito em imagens: em vez de palavras, ação. A vida
de Brás Cubas é de uma passividade completa, conforme narrada
pelo próprio após a morte. O momento em que ele é o agente
ativo de sua vida é, paradoxalmente, após a morte, quando
Brás passa a fazer uso das palavras de maneira provocativa
e maliciosa. Não é o filme que é verborrágico, é o personagem.
Nesse caso havia que assumir, e mais, tirar proveito do
falar, transformando essa aparente dificuldade em uma virtude.
Às primeiras leituras foi difícil perceber o essencial do
enredo, ou seja, o que eram as coisas supérfluas e o que
era indispensável para contar a sua vida. Aprofundando a
questão, percebi que se eu fosse muito rígido e eliminasse
os devaneios da narrativa, corria o risco de tornar o enredo
estéril, pois a história de Brás Cubas em si mesma é a de
um sujeito supérfluo, muito simples e banal, e é justamente
num arranjo dessa banalidade que reside o interesse e sofisticação
da trama.
Um trabalho específico, de importância fundamental no resultado
final do roteiro, foi a elaboração dos diálogos com o José
Roberto Torero. O Torero recebia cada versão do roteiro
e vinha com um novo tratamento de diálogos. Da parte dele
a principal preocupação seria com a "narração do fantasma",
que conduz a história e não podia ser nem excessivamente
prolixa e erudita, nem muito simplista; deveria ser um procedimento
que se diria "machadiano", mas não literalmente o que estava
no livro. Reginaldo Faria gravou essas narrações durante
as filmagens. Quando o filme estava em processo de montagem,
achamos necessário reescrever quase toda a narração. Assim
o fizemos e regravamos com o Reginaldo; recolocamos as imagens,
corrigimos novamente e repetimos o processo por mais duas
vezes.
Um roteiro serve como um guia para filmar. Guia no sentido
de orientação, pois ele deve ser entendido literalmente
como "aquilo que traça a rota". Ele é algo intermediário
entre uma idéia e a obra final: o filme. Discute-se - e
é discutível - se o roteiro é uma obra literária em si.
A mim basta ter a certeza que ele é a parte literária do
filme, e que não se faz filmes sem ele.
Mesmo sendo o roteiro peça fundamental da feitura de um
filme, não podemos dizer que filmes sejam meramente roteiros
filmados, textos com imagens. O cinema se utiliza de recursos
de linguagem singulares com uma sintaxe sem equivalentes
sistemáticos com a escrita, como os ângulos e movimentos
de câmera, a fotografia. A interpretação dos atores traz
diferentes possibilidades de ampliar e modificar o entendimento
de uma cena escrita, acrescentando significados aos diálogos
e funcionando como uma espécie de "entrelinha" cinematográfica.
A cenografia descreve, qualificando estados psicológicos,
sentimentos, climas narrativos, é algo que é por um lado
semelhante à descrição literária, por outro completamente
diferente já que o cinema se utiliza da imagem física, inexistente
na linguagem escrita. Assim também a música, a montagem,
e quaisquer outros elementos em que se queira desdobrar
um filme, são recursos utilizados para contar a história
que podem ser um pouco análogos a um ou outro processo literário
mas não são o equivalente exato; que podem estar descritos
em um roteiro de cinema mas não completamente determinados
por ele. A adaptação cinematográfica da obra literária e
a fidelidade ao original, ou não, depende também desses
elementos.
Alguns princípios extraídos do romance ajudaram a definir
idéias que foram úteis para nossas filmagens do "Memórias
Póstumas". Parecia fundamental a leveza de Machado de Assis,
sua maneira pouco enfática de dizer as coisas - o tom quase
prosaico mas de extrema elegância do romance. Essa característica
do livro foi adotada de forma análoga, por exemplo nos enquadramentos
de câmera, que deveriam ser bem compostos porém simples,
sem ângulos muito altos ou baixos, sem planos com movimentos
excessivamente rebuscados, combinados a uma leveza fotográfica
conseguida com um contraste baixo das imagens, que deixasse
tudo bastante visível e claro.
Na prosa machadiana há uma economia de descrições e um texto
pouco adjetivado - o autor vai direto ao assunto, sem introduções
prolongadas nem excessos. Assim, na filmagem, evitamos também
os enquadramentos que fossem descritivos, não havia porque
fazer, por exemplo, uma panorâmica na sala aonde se iria
dar a ação só para descrevê-la e criar "clima" para a própria
ação. Para eliminar excessos, a iluminação não poderia dramatizar
demais nenhuma cena (não se filmou com grandes contraluzes,
contrastes, exuberância de iluminação e cores). Os cenários
não deveriam exagerar na qualificação, como que evitando
adjetivar a imagem - assim, por exemplo, na loja de Marcela,
depois que ela está feia e bexiguenta, o cenário não deveria
ser enfaticamente carregado, exagerando no peso daquilo
que a cena já transpiraria, sem reiterações.
A postura obcecada foi de tentar sempre manter uma certa
elegância sóbria, eliminando tudo o que pudesse parecer
supérfluo e acessório para contar a história, deixando também
de lado aquilo que tivesse somente como virtude a fruição
estética em si, ou apenas servisse para produzir um efeito
de impacto e impressionar o espectador. Seria como tentar
imitar a maneira discreta e elegante do texto de Machado
de Assis, que usa as palavras com muita propriedade e exatidão,
de forma ponderada e finamente irônica.
Da quantidade de significados nas frases do romance, que
a toda hora sugerem idéias múltiplas, com jogos de palavras
constantes que revelam "entrelinhas" saborosas, procurou-se
extrair um pouco do trabalho dos atores. A toda hora especulávamos
o que o personagem estaria sentindo além do que é óbvio
e literal à cena, às vezes alguma coisa contraditória ao
que o narrador sugere com palavras. Os atores, cientes da
verve cômica do texto, também tinham como parâmetro a leveza
e sutileza constantes na interpretação. Seria um trabalho
com humor mas que fingia ser "sem humor" algum. Algo que
poderíamos chamar de um humor dissimulado. E assim como
os atores, o fotógrafo e o diretor de arte, todos os outros
profissionais que participavam criativamente do filme eram
levados a se guiar por essa mentalidade.
Numa metáfora talvez um pouco grosseira, eu dizia que se
o filme fosse uma música, ele não seria uma grande sinfonia
orquestrada, nem um rock barulhento; ele seria mais parecido
com uma música de câmera ou com o João Gilberto tocando
baixinho com um violão. Todos os que criavam no filme trabalharam
em torno desses conceitos.
Um filme não é um roteiro somado a uma fotografia, mais
uma interpretação de atores, com música e um ritmo de montagem
das cenas, em ambientes produzidos e cenografados. Ele resulta
da combinação de todas essas coisas, e torna-se um produto
diferente de cada um desses elementos tomados separadamente.
A sensação de realidade provocada pelo cinema deriva da
complexidade dessas combinações que remontam de alguma forma
à complexidade do mundo real, e é nessa impressão de "inventar"
uma realidade que está um dos grandes prazeres da criação
cinematográfica.
Na realização de um filme se internaliza a tal ponto seu
imaginário, a atmosfera e seu tom particular de comédia,
terror, drama ou o que quer que seja, que às vezes não é
necessário mais fazer grandes racionalizações sobre as regras
desse mundo; elas passam a ser intuitivas. Isso ocorreu
no "Memórias Póstumas", quando chegamos a um ponto em que
praticamente não se pensava mais em Machado de Assis nem
em livro nenhum e a história pertencia a todos que a estavam
criando. Era como se Machado já tivesse nos dado "régua
e compasso" e a nós cumpria utilizar esses instrumentos
da melhor maneira que pudéssemos, e com liberdade total.
Se por um lado todo o processo de definição do filme se
baseou em parâmetros da obra (e isso nos dá um sentimento
de extrema fidelidade ao original) essa posição não podia
ser encarada como uma camisa-de-força, que tolhesse qualquer
iniciativa. Concedemo-nos a liberdade criativa de fazer
as coisas da forma que nos parecia melhor, e não necessariamente
da forma que soasse mais parecido a Machado de Assis.
E aí, depois do filme concluído, volta a pergunta do início:
fomos fiéis à obra? É difícil responder. O que dá para afirmar
é que fomos fieis à nossa leitura e à motivação que ela
suscitou, seguimos sua força inercial, seu embalo. Fomos
sinceros a nossa vontade cinematográfica suscitada pela
leitura, mas em nenhum momento colocamos a obrigação de
fidelidade à obra literária acima das particularidades do
filme.
Nisso tudo o que mais importa é que fizemos o filme por
gostar do livro e a isso não traímos. Se para nós que o
fizemos houve liberdade para interpretar, espero que ao
espectador não seja necessário se lembrar que está assistindo
a uma adaptação literária, que possa usufruir do prazer
de assistir a um filme independente do outro prazer, o de
ler um grande livro."
André
Klotzel
|